Em Fevereiro de 2017 o livro do Clube de Leitura as Leitoras de Pandora foi, por sugestão de uma leitora, A Vegetariana de Han Kang. Ainda não tinha lido nada da autora de quem, até ao final de 2017, iria ler ainda mais dois livros e poder ouvir pessoalmente na Feira do Livro do Porto. Han Kang tornou-se uma das minhas autoras favoritas e aguardo com expectativa que a totalidade da sua obra seja traduzida para uma língua em que eu tenha o privilégio de saber ler.
Atos Humanos foi publicado em 2014 na Coreia do Sul e chegou a Português no ano passado. Centra-se num período histórico da Coreia do Sul que eu desconhecia: o massacre de Gwangju. Numa introdução da tradutora inglesa temos uma breve explicação do contexto histórico e político deste massacre em que se especula terem sido assinados mais de 1000 coreanos pelo seu próprio exército.
“Dantes, tínhamos um tipo de vidro que não se partia. Uma verdade tão dura e transparente que até podia ser de vidro. Por isso, pensando bem, foi só quando ficámos estilhaçados que provámos que tínhamos alma. Que, na realidade, éramos seres humanos feitos de vidro.”
Atos Humanos, Han Kang
Desde o início este livro mostrou-me a minha ignorância perante um momento de tanta violência, apenas por ter acontecido longe de mim. De quantas violências eu me escondo pela distância? E como posso aproximar-me das pessoas que não sei que sofrem? Como posso ouvir as suas vozes? Quem são as pessoas cujo sofrimento é esquecido, e porquê?
Atos Humanos tem sete partes que seguem sete pessoas diferentes, em tempos diferentes, em realidades diferentes; homens e mulheres, mães e filhos, vivos e mortos. A violência atravessa todas as vidas da cidade de Gwangju, ao longo das suas vidas todas. Continua na repressão que muda mas que se mantêm, nas dores que o corpo sentirá para sempre, no vazio que ficou no lugar dos que morreram.
“Quando morreste, não pude fazer-te um funeral e, assim, a minha vida tornou-se um funeral. Quando foste envolto numa lona e levado num camião de lixo.”
Atos Humanos, Han Kang
Unindo estas narrativas está Dong-ho, um rapaz de 15 anos que cuida dos corpos das vítimas. O livro centra-se em Dong-o, espelhando na sua escrita o mesma cuidado que ele dedica às vítimas. Han Kang não se foca na luta, na revolução, na violência, mas no preservar das vítimas, devolver-lhes a identidade, alguma dignidade, lembrar que foram pessoas, que devem ser honradas e lembradas. Para Dong-ho as vítimas não são números, são nomes.
E devem ser nomes para nós também. Apesar da distância no espaço, no tempo. Em Atos Humanos Han Kang diz-nos que não podemos esquecer as vítimas da violência do mundo, no país dela, no nosso, em todos. Depende de nós não esquecer. Cuidar da sua memória como Dong-ho lhes cuidou dos corpos. E permitir que as vozes daqueles que morrem ainda se ouçam nas nossas palavras.
“Cada pessoa que conheço pertence à raça humana. E isso inclui-o a si, que está a ouvir este testemunho. Tal como me inclui a mim.”
Atos Humanos, Han Kang
A Violência pt.1: No Exílio, Elisa Lispector
A Violência pt.2: Cassandra, Christa Wolf
Texto escrito por Diana Fontão
Nasceu em 1985 em Pevidém, Guimarães. Vivo no Porto. Escreveu O Interior Profundo e organiza mensalmente o Clube de Leitura da Confraria Vermelha Livraria de Mulheres. Podes visita-la no blog diana fontão.