À luz de diversas teorias, ser mulher tem sido historicamente considerado patológico. A inconstância, a ausência de pensamento e lógica, a incapacidade de refletir eram consideradas características da psique feminina. A independência, a autonomia e a objectividade eram parâmetros de uma personalidade saudável contudo não eram valorizados da mesma forma em homens e mulheres. A dependência, submissão e o sentimentalismo constituíam atributos de uma mente menos saudável ao mesmo tempo que eram esperados e incentivados nas mulheres, que deveriam possuir uma personalidade terna, sensível e cálida.
Todas aquelas mulheres que não cumpriam com estes requisitos da personalidade-edredão podiam ser calificadas de loucas mas quando apresentavam dita personalidade, mesmo que incentivada, eram tratadas como umas ‘totozinhas‘ fúteis e frágeis. Ou seja, como diz o ditado popular, presas por ter cão e presas por não ter.
O conceito de loucura está intimamente ligado aos comportamentos femininos. As mulheres éramos, e ainda não o deixamos de ser totalmente, consideradas loucas por natureza, por bioquímica. Passamos de “estar” doentes a “ser” doentes.
Doida Não e Não!
Maria Adelaide Coelho da Cunha, como nos mostra a escritora Manuela Gonzaga, foi mantida presa num manicómio por ser mulher, por não cumprir o que se esperava dela como mulher, como esposa, como mãe, ou seja, submissão e renúncia, tal como lemos nas páginas do livro, “Tivesse ela mantido as aparências”.
O sistema nervoso das mulheres era designado de instável, com a mínima mudança nas suas vidas as desequilibrava mental e emocionalmente. Neste sentido podemos falar que houve uma “feminização da loucura”.
Feminização da loucura
No século XIX, de facto, considerava-se que a insanidade mental das mulheres começava nos seus próprio órgãos genitais: no útero localizava-se a loucura.
Uma loucura de teoria, verdade?!??
A eterna doença das mulheres até metade do século XX, quando se evidenciou que era uma doença inventada, foi a histeria (hystera, palavra grega para designar o útero): a histeria foi esse saco sem fundo no qual desde Hipócrates até Freud caíram todos os “problemas” de saúde das mulheres e que os grandes ilustrados não conseguiam (ou não lhes interessava) identificar. A histeria é a visão da mulher como um não-homem e se não é um homem, que interesse tem o que ela sente, o que ela deseja, a quem ama?
Dezenas de sintomas encaixavam num diagnóstico de histeria: cansaço, ventre e pernas inchadas, irritabilidade, egocentrismo, apatia, falta de apetite, menopausa, SPM, felicidade, bom humor…. Já vos comentei que éramos ‘presas por ter cão e presas por não ter’. Se estavas apática porque estavas apática, se rias porque rias… tudo podia ser considerado, caso Eles assim o entendessem, como histeria.
A histeria na época vitoriana tornou-se num diagnóstico comum e de certa forma considerava-se normal que assim fosse, as mulheres não eram homens por isso era natural sofre do mal de humores. Às solteiras era lhes prescrito que casassem e tivessem filhxs e as casadas era-lhes realizadas ablações do útero e ovários completamente desnecessárias. Algumas tiveram um pouco mais de sorte e aplicaram-lhes a terapia da “massagem pélvica”, o que hoje compreendemos como masturbação e assim provocar nas mulheres o que se designava de “paroxismo histérico”, o que vem a ser um orgasmo.
Os vibradores como instrumentos terapêuticos (nunca como brinquedos para o prazer) foram usados em luxuosos balneários e divulgados em revistas femininas como aparelhos anti stress até meados do século XX.
No fim da segunda guerra mundial as mudanças impactaram de tal forma a vida das mulheres e a “loucura feminina” que surgiu uma nova narrativa sobre a saúde das mulheres, desenvolveram-se as “drogas legais”, os psicofármacos.
Atualmente 85% dos psicofármacos receitados nos países ditos desenvolvidos estão destinados a mulheres, estes valores não se podem explicar com base em evidências científicas pelo qual temos que pensar que é uma consequência do exercício da biopolítica heteropatriarcal.
Os estereótipos de género ao longo da história, alimentaram a ideia de que as mulheres sofremos mais loucura do que os homens. Mas os estudos académicos de género, ainda recentes e em desenvolvimento, deitam por terra esta ideia, demonstrando que não existe uma discrepância numérica tão vincada como se imagina entre homens e mulheres no que diz respeito à saúde mental em geral. Há sim, uma maior representação das mulheres nas estatísticas psiquiátricas de certos padecimentos, produto e reflexo das iniquidades e opressão que as mulheres experimentamos socialmente. As desordens mentais “tipicamente femininas” são provocadas pelos efeitos da violência e da pobreza que as mulhesazazres enfrentamos quotidianamente.
Durante o século XIX pensava-se que as mulheres tinham uma maior predisposição para certas desordens mentais, eram hospitalizadas com maior frequência e faziam um maior uso ambulatório assim como lhes eram receitados mais psicofármacos do que aos homens e devo partilhar que este cenário mudou muito pouco. Na actualidade, várias investigadores apontam 3 factores de risco aos que se enfrentam as mulheres e que incrementam a sua probabilidade de sofrer desordens na sua saúde mental e emocional: a vulnerabilidade na qual nos coloca a misoginia, os agentes de perda (divórcio, doença ou discapacidade crónica…) e fatores como a depressão provocados pela violência e humilhação sobre as mulheres provocando também baixa autoestima.
“Presa num manicómio por um crime de amor.“
Feito este breve e superficial passeio pela vida e a história das mulheres a frase afirmativa da capa do livro se transforma numa questão. Num ponto de “?”.
Numa sociedade machista e classista, que considerava a mulher como um ser secundário e débil que dependia de um homem para ser governada, o adultério sempre foi tolerado, e de certa forma socialmente aceite, contudo mais tolerado nos homens do que nas mulheres e mantendo sempre as aparências, como podemos ler na página 200 do livro de Manuela Gonzaga, onde vemos como Maria Adelaide Coelho da Cunha é socialmente julgada não tanto pelo adultério mas por fazer público o seu desvario abandonando o marido e “fugindo” com o amante.
Loucura Lúcida
Erro de diagnóstico?
Não. O diagnóstico de Maria Adelaide foi um salva-conduto para manter as aparências. Para honrar a virilidade do esposo. Na página 203 podemos ler “o mais agravado nestas circunstâncias, é o marido de vossa excelência, disse o médico.”
Doida Não e Não! de Manuela Gonzaga narra-nos a história de uma mulher, de Maria Adelaide Coelho da Cunha e coloca sobre a mesa a forma como a saúde mental e a vida afectiva das mulheres foi vista, avaliada e instrumentalizada.
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