Fiquei super contente quando chegou às minhas mãos a tradução de As meninas-prodígio de Sabina Urraca. É difícil as editoras aventurarem-se a traduzir ou editar escritoras “desconhecidas”, por isso, quando acontece, apetece-me abrir uma garrafa de champanhe e brindar – mesmo eu não bebendo!
Eu tinha lido Las niñas prodigio na edição da editora Fulgencio Pimentel (2017) e tinha adorado, não é um livro emocionalmente leve, mostra-nos que nós, mulheres, também temos desejos perversos e pensamos coisas incorretas. As meninas-prodígio explora temas como a sexualidade, a(s) precariedade(s), a sororidade, a pederastia… é uma collage de pensamentos, de experiências, de histórias reais e imaginadas.
Mas quem são as meninas prodígio da Sabina Urraca? São meninas “normais” como Olivia, uma mini-femme fatale obcecada com a morte; Clara, a quem o tio ofereceu de presente um telefone em forma de hamburguer só para falar com ela; ou a protagonista, que deixa que a vida passe por ela, assim como os seus desejos e os seus estranhos pensamentos…
As meninas-prodígio são cada uma de nós. Todas as histórias alinhavadas por Sabina Urraca nascem das nossas realidades, das realidades das meninas “normais”, dos nossos sentimentos, mesmo que muitos deles possam causar desconforto a quem lê ou até escandalizar, porque as meninas “normais” também têm desejos perversos e pensam coisas incorrectas.
Enquanto avançava na leitura, ia encontrando passagens nas quais identificava emoções ou sentimentos da minha própria infância ou (pré)adolescência, recordando o meu mundo interno e os meus segredos “obscuros”. As sensações provocadas pelas histórias das meninas-prodígio não são pacíficas. Sabina Urraca leva-nos até ao confronto entre aquilo que mostramos – e que achamos correcto – e aquilo que sentimos realmente. Este confronto remexe as entranhas e a razão.
Por exemplo, em relação à protagonista podemos sentir fascínio pela sua forma de sentir, ela sente desejo por todo tipo de seres, sem nenhum preconceito, mas também podemos sentir desconforto porque as suas histórias colocam no centro do furacão as nossas próprias convicções sobre aquilo que achamos ser correto, aquilo que devemos pensar ou sentir. Para muitas de nós pode resultar estranho que uma menina se apaixone por um adulto, porque em algum momento esse enamoramento nos vai conduzir até a pederastia, até ao mito da Lolita ou à antilolita no caso de As meninas-prodígio de Sabina Urraca.
As emoções e questões desconfortáveis em redor da nossa sexualidade vão existir sempre, e a sexualidade das crianças e adolescentes será sempre um tema delicado e controverso.
Eu lembro-me de me sentir atraída por rapazes mais velhos durante a infância e adolescência (quase todas nós temos uma história de amor “platónico” por um professor, por um amigo do irmão mais velho, por um vizinho…)… Em As meninas-prodígio, a sexualidade das crianças está no centro das histórias, uma sexualidade com a qual não sabemos lidar mas que existe, e em cada história, de um jeito mais direto ou mais indireto, Urraca mostra-nos como a sexualidade das crianças é uma questão melindrosa e que um adulto nunca deve ceder mesmo que a criança ou adolescente diga “sim, quero”.
Em As meninas-prodígio a ficção e autobiografia misturam-se e falam-nos do desejo de soltar o peso do passado, de perder o medo, fazer as pazes com os fantasmas e regressar ao momento presente para se ser o que se é. A escrita e a solidão (geográfica e humana) também são as protagonistas neste caminho da redenção e reencontro das meninas-prodígio.
“Voltamos para casa.”
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